sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Branco.

Nem meias nem inteiras palavras o satisfaziam.
Era infinita a sua ânsia por aquilo que poderia adquirir. Era infinita a expectativa.
Era um esgar que não queriam ver. Nem o próprio.
Pretendente a absorvente.
Chora o conhecimento que nunca teve.
Morre com o conhecimento que tem.
Perde algo.
Nem tudo.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Desabafo.

Loucamente ignorantes na busca da estupidez.
Caminhávamos lentamente procurando ignorância e a tarefa revelava-se fácil. Havia muita.
Ignorância premeditada.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Incêndio.

Tinha o calor todo.
Não no coração.
Não nas mãos.
TInha o calor todo.
Caminhava com o calor todo e o calor todo caminhava com ele todo.
Eles tinham-se eles todos.
Ele não gostava de si mesmo ele todo.
O calor gostava demais dele todo.
Hoje o calor gosta mais dele todo mas hoje ele todo não existe.
Ele todo não existe todo.

sábado, 19 de novembro de 2011

Passeio.

Ela não sabia responder.
O nome tinha várias letras mas ela não sabia quais.
Ela caía mas não se aleijava. Nunca se aleijava.
Ela era leve e eu era leve com ela.
Ela era inantigível.
Ela era belas mãos.
Ela era um belo nariz.
Nunca caminhei ao lado dela nem nunca caminhei dentro dela.
Ela caminhou e caminha sobre mim.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Confuso.

São muitos os ouvidos que me olham.
A minha boca abre e são muitos os ouvidos que me olham.
Sou eu que penso que me olham.
Os ouvidos que me olham julgam-me.
São nenhuns os passos que dou sem os ouvidos que me olham.
Um dia calo-me e espero pelos muitos ouvidos que me olham.

domingo, 30 de outubro de 2011

Dividido.

Hoje acordei metade.
Hoje sou metade.
Sou parte de cima ou parte de baixo.
Ontem era parte de cima e parte de baixo.
Hoje sou parte de cima ou parte de baixo.
Desconheço a parte que sou.
Mas hoje acordei metade.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Podemos?

Trocava as minhas mãos com as tuas.
Eu dava-te as minhas. Davas-me as tuas.
Trocava as minhas mãos com as tuas. Para te tocar.
Para te tocar sem constrangimentos.
Para te tocar sem medos.
Para te tocar sem te pedir: "E aqui? Posso?"
Trocava as minhas mãos com as tuas.
Para te tocar com a naturalidade com que toco a minha pele.
Para te tocar. Sempre. Hoje.
Trocava as minhas mãos com as tuas.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Silêncio

O silêncio é peculiar.
É triste por vezes. Mas noutras não.
O silêncio não dança. Não toca. Nem rodopia.
O silêncio não fala. Mesmo quando precisamos. Precisamos muito.
O silêncio por vezes é tortura. Quando contigo estou. Tortura.
Odeio o silêncio com a mesma força com que o amo.
O silêncio é solidão quando companhia queremos e companhia quando de solidão precisamos.
O silêncio pode-se escrever assim: Silêncio. Maíscula.
Mas hoje escrevo-o assim: silêncio.
O silêncio
Sempre.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Falésia.

O caminhar tornou-se pesaroso.
Não conseguia mais.
Não dançava. Com ela.
Ele olhava-a a dançar sozinha. E chorava.
O último passo não pisou terra. O seu corpo sim.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Portas Fechadas.

As chaves deixavam de rodar.
Ou rodavam mas não para onde queria.
Estavas longe e ainda ouvia lágrimas.
Hoje a chuva é o meu tecto e o ódio é o teu.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Discussão é uma Ladra.

Roubavas-me os passos e eu permanecia imóvel.
A tua voz era dor mas não te ouvia gritar.
Corta as palavras com a lingua mas diz-me palavras completas.

sábado, 9 de julho de 2011

Bernardo Soares (Autor)

"Comprar livros para não os ler; ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece."

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Toque.

Não odeio a sensibilidade mas esta parece odiar-me.
Lágrimas não vejo escorrerem nem perto do meu nariz e só as minhas costas vêem as lágrimas que escorrem bem perto do teu.
Jura as tuas mãos perto das minhas e prometo jurar este fragmento de corpo perto do teu.
Odeia-me. Faz-me sentir o desprezo dos teus olhos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Homofobia.

Trocavam cartas que os faziam chorar.
A ele e a ele.
Trocavam cartas que os faziam chorar
Com amor que fazia chorar.

Estavam sempre longe as pontas dos dedos,
Fosse esse o maior dos medos.
Sentiam hoje,
morriam amanhã.

Poucas cartas que os fizeram chorar
Até ao dia em que as fui apanhar,
E com as próprias mãos que hoje não tenho,
Finalmente os consegui matar.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Perspectiva.

Só queriamos o copo de vinho a balançar pelos diferentes dedos e a entornar pelas diferentes direcções. O vinho quente era fresco.
Não eram difíceis as palavras que proferiamos à vezes não para nós não para ti e para mim mas para mim e para mim. 
Hoje queria apenas as tuas pernas a brincar com as minhas e as tuas pernas a falarem e eu calado. E tu calada. Não nos levamos a sério e gostamos disso. Não nos levamos a sério.
Levo comigo o cheiro do teu pescoço e contigo não levas nada.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Trocas.

Retirou duas partes do seu próprio coração. Retirou o lado esquerdo e retirou o lado direito.
Colocou as duas partes do seu coração no cão morto atropelado na berma da estrada.
Depois morreu.
O cão desapareceu da beira da estrada.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Censura.

Sentaram-se os dois.
Conversaram sobre tudo.
Com a alma nao se fala sobre mulheres.
Conversaram sobre nada.

domingo, 22 de maio de 2011

Discretos Comedores de Tempo.

Cada degrau trincava-lhe um pouco do pé. Ao início trincavam apenas. Depois mordiam. Depois arrancavam. Cada degrau trincava e mordia e arrancava um pouco do pé. Mas continuou a subir. Foram ficando as unhas amarelecidas engolidas digeridas. Foram ficando os dedos sugados a custo. Ficou a planta e a palma. E ficou o calcanhar. Na boca dos degraus ficaram unhas e dedos e planta e palma e calcanhar. No topo ficaram duas pernas sem pés. As pernas iguais mas sem pés.

Os degraus tinham ainda fome.

Fincou as palmas das mãos no solo e aguentou todo o peso do seu corpo nos braços franzinos e desta vez desceu e desta vez desceu com as mãos.

domingo, 15 de maio de 2011

Atrás do Último Fica o Pior.

O diabo observava o louco que observava a gaja que observava o gajo que observava a mulher que observava outro gajo que observava o barman que observava os copos que observavam a cerveja que observava a lingua que observava o esófago que observava o estômago que observava o intestino que observava o cu.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Vai Por Favor.

E se mandássemos o mundo à merda? Baixinho para nem ele nem ninguém ouvir. Mas mandavamo-lo à merda. Quando ele viesse. Como sempre com aquele aspecto desfeito. E pobre. E desfeito. Com crise. E se mandássemos o mundo à merda. Se gritássemos. Para nós e para todos ouvirem. Se lhe agarrássemos naquelas orelhas sujas de mundo e lhe gritássemos vai à merda. Ele iria? E se mandássemos o mundo a merda? Aquele mundo que vira sorrisos do avesso. Que lhes corta a etiqueta. E os substitui por não sorrisos. E se hoje mandássemos o mundo a merda? E se eu e tu juntássemos as mãos. E juntássemos as bocas. E mandássemos o mundo a merda. Quando ele nos agarra com força pelo colarinhos, e sacode o mínimo de bem-estar que temos. Aquele que tinhamos guardado no pote das asneiras para o mundo não descobrir. Mas o cabrão descobre-o sempre. E pisa-o. Esmaga-o. E acabou. E se mandássemos o mundo à merda? E se lhe escrevêssemos uma carta? 

-Querido mundo, vai á...

Se ele amanhã vier. Com aquele aspecto esfarrapado. Desolado. Se ele amanhã vier. Desmotivador. Sem esperança. Se ele amanhã vier...

E se mandássemos o mundo à merda?

terça-feira, 26 de abril de 2011

O que é a Sanidade?

Serão loucos os loucos? Serão eles os loucos? Será a sanidade um termo cuja definição está já definida? Serão os loucos sãos e serei eu o louco?  O que são loucos? Malucos? Insanos? Procuro uma definição que encaixe neste termo. Há muito. Será o louco assassino o mesmo louco que o louco que fala sozinho? Ou o mesmo louco que o louco que se exibe livrando-se da sua gabardine? Serão eles todos iguais? Uma espécie? Uma raça? É a sanidade uma grande questão do meu tempo. 

Porque hoje, embora são, sou louco.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Posse Efémera.

Tinha muito pouco. Pouco.
Aos poucos, foi tendo mais. Mais.
De repende, ficou com muito. Muito.
Tinha tanto tanto. Tanto.
Engasgou-se e ficou sem nada. Nada.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Cristovam Paiva (Autor)

O Senhor que foi à fonte
Encontrou um lubizonte
Que se abespinhou com ele...
Foram os dois para um talho
Comer carne de porcalho
E também de um urso reles
Comeram pêlos e peles
E através de um discurso
Ressuscitaram um urso
E o urso deu cabo deles.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Suicídio Viajante

-Agarramos em duas malas. Pouca coisa. E vamos. Não interessa onde.

-Não interessa onde?

-Não interessa onde. Vamos. Simplesmente isso.

Encontraram-se. Um par de horas depois.

-Entao? Vamos?

-Não interessa onde?

-Não interessa onde.

E viu-se longe o fumo tossido pelo comboio.
Um passo em frente.

E viram perto o fumo tossido pelo comboio.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Assobio Diário

E lá num fundo vai ele. Cansado e cabisbaixo assobia uma melodia inaudível. Guarda nos bolsos os acontecimentos. Os bons e os maus.

-Oh dia, vai devagar que amanhã és outro.

E será. Adormece com a escuridão assim como eu. E acorda com a luz assim como eu.

-Oh dia, vem que hoje és outro.

Vem sempre descontraído e sem planos. O que acontecer acontece. Ele quer lá saber. Vai pontapeando pedras que rolam e saltam sobre o asfalto. Vai gritando aos ouvidos de janelas que devagar destapam o cobertor da noite e abraçam o frio gélido da manhã. Nevoso. Chuvoso.

-Oh dia, amanhã és outro?

-Sou sim. Mas para ti não.

domingo, 20 de março de 2011

(Des)conhecimento

          Para quando a antipatia é símbolo de sucesso social. Para quando a indiferença é atraente. A bajulação não. Para quando a beleza é feia. Para quando o feio é beleza. Para quando a arte não é nada. Para quando branco é arte. Diferente é arte. Nada é arte e arte é nada. Para quando um sorriso é azul. Ou castanho. Para quando o branco é negro e é com negro que nos sentimos bem. Para quando chove e não conseguimos abrir os olhos. Para quando abrir os olhos é o que menos queremos. Para quando a gordura é formosura. Para quando não o é. Para quando andamos nus no inverno. Para quando andamos vestido no verão. Para quando a calçada se atira para cima de nós. Nos morde os dedos. Nos rói as unhas. Para quando temos olheiras no peito e pêlos nos olhos. Para quando andamos com as mãos e comemos com os pés. Beijamos com os joelhos. Choramos pelos sovacos. Para quando entramos numa sala e todos nos olham. Para quando isso é bom. Para quando isso é mau. Para quando ler já nada significa. Para quando grandes autores são pequenos autores e para quando pequenos autores são grandes autores. Para quando nós mesmos somos autores. Para quando a poesia não vale nada. Para quando amor é a palavra que nos apunhala desde os tempos do liceu. Para quando temos na manhã a noite e a noite na manhã. Para quando beber não chega. Para quando correr não chega. Para quando a distância que queremos nunca é suficiente. Para quando procuramos até não querermos encontrar. Para quando nos perdemos. Para quando nos encontramos. Para quando tentamos agarrar a música e esta abre janelas e esvoaça. Para quando um piano nos completa. Para quando não gritamos o suficiente. Para quando não falamos o suficiente. Para quando não se sabe o que felicidade é. Para quando felicidade o não é. Para quando a palavra é curta. Para quando dói e sabe bem. Para quando precisamos que doa. Para quando a parede é negra. O humor também. Para quando não o é no bom sentido. Para quando chorar é sorrir e sorrir é chorar.

Para quando estamos. Para quando não estamos.

Até quando estaremos?

domingo, 13 de março de 2011

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Algumas Barras Pintadas no Solo

         Algumas barras pintadas no solo. O contraste do branco no cinzento negro da estrada. A insignificância que adquire para muitos. Quase todos. A inconsciência que resulta em tragédia. Insignificância. Os passos que poderiam ter sido os últimos dada a violência do embate. O susto dos que assistiam e a perplexidade resultante. O pé esquerdo toca o alcatrão. Depois disso, a colisão faz voar um corpo que durante segundos demorados, é projectado. O raspar do corpo no solo. A pele a rasgar. O sangue que fica para trás. A pele a queimar. O ar que pesado, mostra a gravidade do acidente. Os objectos deslizam para a esquerda direita. Nos pneus fica a marca da travagem. Na dianteira fica a ausência do pára-choques. As mossas. Dentro do carro, o desespero do condutor. No chão, permanece a vítima. Imóvel. À volta, estamos nós. Chocados. Imóveis. Ninguém mexe um músculo. É demasiado. Alguém telefona para o 112. O telefone toca. Atropelamento na Cidade Universitária. “Qual é a rua?”. Cidade Universitária. Despachem-se. “É homem ou mulher? Mexe-se? Tem que idade? Está sozinha? Mas e…”. Os serviços que demoram sempre demais para aqueles que não assistem a uma situação comum. No chão. Com o corpo deformado. Assiste-se a alguns movimentos. A multidão rodeia a vítima. Opiniões. Gritos. Lágrimas. É difícil esconder as emoções. A rapariga tenta levantar-se. Uma vez Duas vezes. Os braços perderam a força. Pedem-lhe que se acalme. “Não te mexas querida”. Após uns instantes, a dor chega. Da voz da rapariga ouvem-se agora gritos. Desespero. Dela. Meu. Nosso. Ninguém sabe o que fazer. A rapariga grita. A ambulância tarda. A rapariga grita. A ambulância tarda. Difícil de lidar. Ao longe ouvem-se sirenes. O coração enche-se de esperança e alívio. Depois tudo esmorece. As ambulâncias não são para nós. Irritação. Na altura, nada é mais importante do que o que estamos a presenciar. Pela primeira vez, a rapariga mostra a face. E o choque aumenta. De pele vê-se pouco. O nariz. A boca. Tudo está vermelho. O sangue é demasiado. O sangue é demasiado. Ninguém quer ver. Mas poucos desviam o olhar. Os gritos não cessam. Idosas correm agora, para trás e para a frente. Gritam. Choram. Lágrimas. Lágrimas. Os gritos não cessam. A rapariga não sabe o que se passa e perde a consciência. Mas quando acorda, os gritos recomeçam. Os gritos não cessam. A ambulância chega. Rezas. Palavras de esperança. Optimismos. Pessimismos. Incerteza. Dor.

Hoje quero fechar os olhos. Hoje tento fechar os olhos. Hoje não quero fechar os olhos. A imagem é difícil de apagar. O som é difícil de apagar. O corpo. O plástico. A máquina. A ironia de um dos intervenientes conduzir uma carrinha funerária. É de facto demais. O inevitável pensamento, “E se fosse eu ali?”. Ou no chão. Ou no carro. Decerto são ambos traumáticos. Assustadores. Não foi comigo e tenho medo. Não quero cerrar os olhos. A imagem é demasiado dolorosa. Não quero cerrar os olhos. Mas os olhos abertos também vêem.

Hoje não durmo.

Amanhã veremos.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Quotidianamente Comum

      A barba que cresce. Não se corta. Atinge dimensões que merecem olhares (pouco) discretos dos demais. É o luto facial. A escuridão na pele branca que se esconde perante um sol que permanece tímido há já demasiado tempo. Os olhos que se mostram cada vez menos. Que descansam cada vez menos. Que mudam de cor. Adquirem diferentes cores. As roupas que todos os dias são menos coloridas. Que todos os dias são mais escuras. Que todos os dias são negras. A percepção da realidade que se auto-distorce à medida que o cérebro se auto-destrói. A capacidade intelectual que diminui a pensamentos vistos. A palavras vistas. Ouvidas. Sentidas. A paciência que pede alguma paciência. Que aos poucos desiste. Esquece. Não vale o esforço. A boca que esquece o rasgar de um sorriso. Que não quer o rasgar de um sorriso. A necessidade de ser agradável fica presa por uma corda velha na paragem de autocarro. Vemo-nos em casa. Ou não nos vemos em casa. A vontade de voltar. De ficar. A neura do regresso. Tudo igual mais uma vez. E amanhã outra vez. E depois de amanhã sem vez. Os aviões que esperam. Lá no alto. Intermitências da decisão. A escassez de fundos. A doença que esperamos durante largos meses e que se manifesta nos escassos dias em que inconveniente não chega para a descrever. Puta. O carro que é cada dia mais velho. O cão que é cada dia mais chato. A mãe que é cada dia mais mãe. E o pai que é cada dia mais…o pai que é o pai. Caminhamos todos na mesma direcção e pensamos caminhar em direcções opostas. As pessoas que vemos parar enquanto caminhamos. Estancaram. Estancámos. A dor que não é pequena. A música cujas letras se perdem. Boas ou más. Encontramo-nos exactamente a meio caminho e o meu caminho é sempre mais longo. Mais passos. Mais minutos. Mais fôlego. O livro que mais coçado fica. Debaixo do braço direito. Os cigarros que adormecem e se apagam dentro da boca de um qualquer cinzeiro de um qualquer estabelecimento. O café que vem queimado. E que queima. E que aquece. A caneta que deixa de escrever. Mais cara ou mais barata. A caneta que quando mais precisamos deixa de escrever. Quando menos também. A esquina que esperamos ter no seu virar uma nova vida. Uma nova pessoa. Uma nova conversa. O rastilho do interesse por uma vida que vem cinzenta a cada palavra proferida por aqueles que…aqueles que lá estão. É um colchão duro, manchado, usado. Usado. São os instantes em que a cegueira da inconsciência nocturna surge, os mais produtivos de todo um dia. Todo um dia. Os ponteiros de um relógio que parecem parar vezes demais para apertar os atacadores. Velcro. O atraso da luz que sabe bem. A luz que sabe bem. O sol que sabe bem. O sol que sabe mal. Os dentes amarelos que não se vêem abrem os olhos ao dia que coberto, enche as estradas de peões. Condutores. Buzinas. Palavrões. Hoje não me dêem a mão.

O silêncio que me emprestam começa o dia como sempre devia começar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Queda Abstracta

Não me segures pelos dedos, mãos ou braços,

Deixa-me escorregar e percorrer o abismo,

Lá em baixo deambula a serpente, gigante, ondulada,

Deixa a música abafar o som do nada,

Deixa o som ser tomado, comido,

Grita mas não faças barulho, eles dormem,

Todos dormem, mas estão acordados,

Roubam sonhos, desejos,

Eu desejo-te, quero matar-te,

Deixa a gravilha palpitar no solo ardente, borracha queimada,

A tua pele sente o fresco de pequenas pedras que ardem,

Larga, Larga-te, Liberta-te,

Sente o abismo e trepa, por onde conseguires,

Segura-te, aos pulmões, ao estômago,

Agora larga-te e não te segures, nunca mais,

Não te segures,

Sente a pele deformar-se, alargar-se,

Agora, cai, Agora, cai, Agora, cai,

Sente-te, sente-te no chão,

Alastrado no chão, desfeito, desfigurado,

Sente a pureza da dor, sente a pureza de já não sentires dor,

Fica, Deixa o sangue cobrir o chão, deixa o chão ser sangue,

Deixa haver chão no sangue,

Alastra-te pelo solo e influencia, torna os teus ossos o solo,

Os teus olhos o solo,

Torna-te o solo,

Torna-te líquido no sólido.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Macbeth, V, 9.

Life is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

Sair de Casa Mata.

        Encostava-se a mim. Beijava-me a face. A barba picava-lhe. E ria-se. Ria-se com a alegria de uma criança que descobriu algo novo e está prestes a pedir “outra vez!”. Ouvia a água no banho escorrer-lhe pelas costas. Ouvia a sua voz escorrer-lhe pelos lábios. Cantava músicas antigas cujas letras eram intermitentes consoante a sua memória. Era nessa altura que eu escrevia. Que eu sorria. Que eu chorava. Que eu amava.
E eu, esperava. Esperava que saísse para olhá-la no exacto momento em que encharcada, fazia deslizar a porta de correr e aparecia, atrapalhada com a tarefa que era a de segurar firmemente a toalha acima do peito. E ela, despreocupada, apenas com as pontas dos dedos deslocava-se para a cómoda que atrás de mim guardava a sua indumentária mais íntima. Atrás de mim, oiço a toalha que a cobria deslizar pela sua pele e atingir o chão. Não olho. Deixo a imagem de perfeição transformar-se no pensamento de perfeição. Porque perfeição é isso mesmo, um pensamento. Oiço a sua voz perguntar-me algo e responder-me algo, como só ela consegue sem que sequer me deixe proferir a mais pequena e simples palavra. A porta bate atrás de mim e começa mais uma vez, o tormento de um dia à espera do seu retorno. Do seu calor. Mas hoje, eu saio. Abro a porta e por duas vezes subo as escadas principais com dúvidas se a porta ficou trancada. Devoro cada pedaço de pedra com prazer e com um sorriso disfarçado nos lábios. Quando alguma mulher se atravessa no meu raio de visão, desvio o olhar. Esqueço. E lembro. Lembro-me da pessoa cuja melodia cantada no duche me fez caminhar mais um dia. O sol desafia todas as leis. O céu, limpo, grita com o Inverno. Pede-lhe que vá embora. Diz-lhe que para ele, não há mais emprego. Acabou. A minha pele vai ficando rosada. Escaldada. A face. Os braços. A minha garganta vai ficando seca. Seca. A minha garganta vai ficando seca. Bebo um pouco de água. Seca. A minha garganta vai ficando seca. Amedrontado em relação a não conseguir cumprir a distância que me levará de volta à minha toca, dou meia-volta e caminho. Volto. Reponho agora a pedra que para este lado vim devorando. Olho para cima e vejo o céu reatar com o Inverno. Vejo o céu reatar com o Inverno e a chuva com eles. Ao chegar a casa a porta não está trancada. Não está trancada. Ao entrar. A água do duche faz-se ouvir. A melodia e as letras intermitentes ecoam. A porta de correr desliza. O corpo encharcado pinga na alcatifa. Encharcado. E à espera. À espera de tudo isso, não estou eu. Desta vez, não sou eu.
Oiço um estrondo esmagador. Ensurdecedor. Um estrondo um estrondo.
Nunca soube o que foi. Atrás de mim, ficaram dois corpos. Caídos. Um, tinha uma toalha. Outro, esperava. Esperava por aquilo que eu esperei. Mas agora, não espera mais.