Os seus olhos estavam mudos e a sua boca cega. Fazia da pequena escrivaninha, herdada por um parente cuja descendência era tão distante que não existia nome para a classificar, o meio de descarregar a dor em palavras e curar as suas feridas. A tenra idade não se fazia ler no conteúdo gritado pela sua caneta e aprisionado em velhos pedaços de papel que há muito deixaram de o ser. Na sua face, jaziam marcas de quem quer ser antigo e não o é. Marcas de sentimentos precoces. Marcas de atitudes perante uma curta vida que sempre se mostra áspera mesmo aparentando a maior suavidade. Olheiras cravadas na pele com picaretas barulhentas de noites mal dormidas. Os olhos estaticamente abertos que engolem as palavras dão razão às picaretas que desenham as suas olheiras. O sono pede descanso. Os lábios finos e gretados lembravam a terra seca despedaçada após pisada por impiedosos pés caminhantes. A sua pele era escura. A sua pele era clara mas tornara-se escura. Há muito que não sentia a frescura de uma gota de água e o calor de um raio de sol. Ao olhá-lo, apenas se viam sacos de pele que cobriam os ossos frágeis e completavam a sua figura. Subnutrido. Um corpo de eterna criança. Um corpo que mostrava que para ele, não há nada lá fora. Não há nada para alem da sua escrivaninha e das suas folhas que já não o são e da sua caneta que o será sempre.
Naquela casa poucos sabiam quem lá estava. Menos ainda queriam saber. As portadas mantinham-se fechadas. Verão. Inverno. As portadas mantinham-se fechadas. Há muito desconheciam o cheiro do verniz. Há muito se habituaram ao seu aspecto podre. Verde. As paredes vestiam agora uma cor acinzentada. Apodrecida. Tomada de assalto pela falta de cuidado. As paredes tinham agora musgo e outras ervas anónimas trepando. As paredes tinham agora bolhas de humidade ansiosas por rebentar. As paredes esperavam ser derrubadas. Desaparecer. Mas lá dentro permanecia a mesma criança que escrevia escrevia escrevia.
Invejava-lhe a capacidade de lidar com a solidão. Pedia-lhe que lidasse com a minha e ele sorria apesar de não o fazer. Não me ouvia mas eu sabia que sim. Mantinha a cabeça submersa na sua escrita e continuava, rasgava linhas parágrafos páginas e capítulos com a sua caligrafia desenhada. E eu observava-o. Ouvia-o preencher os pedaços de papel ordenando-os aleatoriamente. E eu falava. Contava-lhe tudo. Contava-lhe sobre a minha vida. Sobre a minha semana. Sobre o meu dia. Contava-lhe acerca das minhas paixões proibidas. Sobre as minhas paixões mal sucedidas e sobre as minhas paixões mal sucedidas. E eu falava. Falava-lhe dos meus sonhos. Dos meus desejos. Dos meus objectivos. Falava-lhe sobre tudo isso sabendo que nada do que planeasse se realizaria. Estou preso a ele. Nunca mo pediu. Nunca lho disse. Mas estou preso a ele. Nem sei se sabe que aqui estou. Todos os dias. A observá-lo enquanto faz uso da genialidade que não conheço mas teimo em acreditar que existe. Sonho em ouvi-lo falar. Discursar. Dissertar. Imagino o timbre da sua voz. Imagino-o grave e sábio apesar de ser uma criança. Não é uma criança. É um velho disfarçado. É uma reencarnação equivocada. Dou graças para que ninguém saiba que aqui está. É demasiado grande para ser visto por pessoas com uma mente tão pequena. Merece ser admirado com moderação.
Ao inicio pensei que fosse tudo timidez. Que cederia passado algum tempo e que seriamos bons amigos. Confidentes. Parceiros do crime mas sem a parte do crime. Parceiros. Que ficaríamos juntos e envelheceríamos juntos até que a nossa carcaça fosse digna de alimento para abutres. E mesmo depois continuaríamos juntos. Desfeitos mas juntos. Ao inicio pensei que nos tornaríamos lenda. Nos tornaríamos aqueles que viveram sem ninguém saber que o fizeram. Nos tornaríamos pelo menos um boato. Um boato na boca daquelas pessoas que gostam de criar boatos mas que ninguém percebe porque criam boatos mas ainda assim continuam a interessar-se nesses boatos. Ao inicio pensei que sim. Hoje estamos no meio e ainda penso que sim. Talvez no final nada seja assim mas hoje estamos no meio e ainda penso que sim.
Não largava as suas mãos. Olhava-as dias a fio observando como as suas unhas sujas não cresciam. Não as roía. Não as cortava. E ainda assim não cresciam. Permaneciam sujas e permaneciam com o mesmo comprimento. Desde sempre.
Foi o primeiro movimento que o vi fazer desde há muito. Para além da valsa que as suas mãos e braços protagonizam enquanto escreve. Largou a caneta que bateu na mesa com um estrondo inaudível. Deixou cair a cabeça devagar e esta acariciou a escrivaninha uma duas vezes e estagnou. Um pequeno pedaço de papel caía. Não suave como uma pena num momento de câmara lenta. Mas firme. Firme e pesado.
Baixei-me. E pela primeira vez lia algo que escrevera:
“Ajudas-me?”