sábado, 30 de outubro de 2010

Não era quem queria que fosse

Os seus olhos estavam mudos e a sua boca cega. Fazia da pequena escrivaninha, herdada por um parente cuja descendência era tão distante que não existia nome para a classificar, o meio de descarregar a dor em palavras e curar as suas feridas. A tenra idade não se fazia ler no conteúdo gritado pela sua caneta e aprisionado em velhos pedaços de papel que há muito deixaram de o ser. Na sua face, jaziam marcas de quem quer ser antigo e não o é. Marcas de sentimentos precoces. Marcas de atitudes perante uma curta vida que sempre se mostra áspera mesmo aparentando a maior suavidade. Olheiras cravadas na pele com picaretas barulhentas de noites mal dormidas. Os olhos estaticamente abertos que engolem as palavras dão razão às picaretas que desenham as suas olheiras. O sono pede descanso. Os lábios finos e gretados lembravam a terra seca despedaçada após pisada por impiedosos pés caminhantes. A sua pele era escura. A sua pele era clara mas tornara-se escura. Há muito que não sentia a frescura de uma gota de água e o calor de um raio de sol. Ao olhá-lo, apenas se viam sacos de pele que cobriam os ossos frágeis e completavam a sua figura. Subnutrido. Um corpo de eterna criança. Um corpo que mostrava que para ele, não há nada lá fora. Não há nada para alem da sua escrivaninha e das suas folhas que já não o são e da sua caneta que o será sempre.
Naquela casa poucos sabiam quem lá estava. Menos ainda queriam saber. As portadas mantinham-se fechadas. Verão. Inverno. As portadas mantinham-se fechadas. Há muito desconheciam o cheiro do verniz. Há muito se habituaram ao seu aspecto podre. Verde. As paredes vestiam agora uma cor acinzentada. Apodrecida. Tomada de assalto pela falta de cuidado. As paredes tinham agora musgo e outras ervas anónimas trepando. As paredes tinham agora bolhas de humidade ansiosas por rebentar. As paredes esperavam ser derrubadas. Desaparecer. Mas lá dentro permanecia a mesma criança que escrevia escrevia escrevia.
Invejava-lhe a capacidade de lidar com a solidão. Pedia-lhe que lidasse com a minha e ele sorria apesar de não o fazer. Não me ouvia mas eu sabia que sim. Mantinha a cabeça submersa na sua escrita e continuava, rasgava linhas parágrafos páginas e capítulos com a sua caligrafia desenhada. E eu observava-o. Ouvia-o preencher os pedaços de papel ordenando-os aleatoriamente. E eu falava. Contava-lhe tudo. Contava-lhe sobre a minha vida. Sobre a minha semana. Sobre o meu dia. Contava-lhe acerca das minhas paixões proibidas. Sobre as minhas paixões mal sucedidas e sobre as minhas paixões mal sucedidas. E eu falava. Falava-lhe dos meus sonhos. Dos meus desejos. Dos meus objectivos. Falava-lhe sobre tudo isso sabendo que nada do que planeasse se realizaria. Estou preso a ele. Nunca mo pediu. Nunca lho disse. Mas estou preso a ele. Nem sei se sabe que aqui estou. Todos os dias. A observá-lo enquanto faz uso da genialidade que não conheço mas teimo em acreditar que existe. Sonho em ouvi-lo falar. Discursar. Dissertar. Imagino o timbre da sua voz. Imagino-o grave e sábio apesar de ser uma criança. Não é uma criança. É um velho disfarçado. É uma reencarnação equivocada. Dou graças para que ninguém saiba que aqui está. É demasiado grande para ser visto por pessoas com uma mente tão pequena. Merece ser admirado com moderação.
Ao inicio pensei que fosse tudo timidez. Que cederia passado algum tempo e que seriamos bons amigos. Confidentes. Parceiros do crime mas sem a parte do crime. Parceiros. Que ficaríamos juntos e envelheceríamos juntos até que a nossa carcaça fosse digna de alimento para abutres. E mesmo depois continuaríamos juntos. Desfeitos mas juntos. Ao inicio pensei que nos tornaríamos lenda. Nos tornaríamos aqueles que viveram sem ninguém saber que o fizeram. Nos tornaríamos pelo menos um boato. Um boato na boca daquelas pessoas que gostam de criar boatos mas que ninguém percebe porque criam boatos mas ainda assim continuam a interessar-se nesses boatos. Ao inicio pensei que sim. Hoje estamos no meio e ainda penso que sim. Talvez no final nada seja assim mas hoje estamos no meio e ainda penso que sim.
Não largava as suas mãos. Olhava-as dias a fio observando como as suas unhas sujas não cresciam. Não as roía. Não as cortava. E ainda assim não cresciam. Permaneciam sujas e permaneciam com o mesmo comprimento. Desde sempre.
Foi o primeiro movimento que o vi fazer desde há muito. Para além da valsa que as suas mãos e braços protagonizam enquanto escreve. Largou a caneta que bateu na mesa com um estrondo inaudível. Deixou cair a cabeça devagar e esta acariciou a escrivaninha uma duas vezes e estagnou. Um pequeno pedaço de papel caía. Não suave como uma pena num momento de câmara lenta. Mas firme. Firme e pesado.

Baixei-me. E pela primeira vez lia algo que escrevera:

“Ajudas-me?”

Fragmagens

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Para trás e para a frente

Passageiras da tristeza deambulam pela superfície áspera e acidentada que é hoje a sua pele. Já lhes conheceria os nomes se os tivessem. A cor avermelhada que após a morte do seu amor os seus olhos adquiriram, não mais desapareceu. Ostentava no seu corpo, velhas roupas que tal como a sua pele, cediam à batalha contra o tempo. Cada centímetro de tecido precedia outro centímetro de tecido esburacado e desfiado. A cor, negro negro como os olhos da morte que há muito ansiava ver, deixara de ser negro negro. Tornara-se um negro avermelhado esbranquiçado. Um negro diferente. Um negro de luto. Há muito aguardava a visita da morte. Aguardava-a com um sorriso se soubesse o que um sorriso significa. Há muito que não sabe. Nunca o soube. Já muitas vezes trincara o cano da herança do seu amor ameaçando premir o gatilho. Nunca o fez e pensa que nunca o fará. Enquanto espera as três pancadas secas na sua porta, pancadas secas provenientes da mão esquelética da visita que tanto aguarda, permanece imóvel. Permanece imóvel, sentada na cadeira construída pelo seu amor, baloiçando. O chiar que acompanha tímido o movimento da cadeira para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente é o único som que hoje conhece. É o único som de que se lembra. Desconhece há muito o som da sua voz. Não tem ninguém com quem falar. Não quer ninguém com quem falar. No dia da morte do seu amor, recebeu visitas. Visitas de pêsames e condolências. No dia da morte do seu amor, recebeu visitas. Visitas que foram as ultimas. Visitas que no preciso momento em que pisaram o que hoje é um vazio, uma marca no chão desgastado, um tapete que o fora mas que já não o é. Visitas que no preciso momento em que o pisaram, foram recebidas com disparos cuspidos pelo cano da herança do seu amor. Foram esses disparos. Foi o som desses disparos o ultimo que conhecera para alem do chiar que tímido acompanhava o movimento da cadeira construída pelo seu amor para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente.
Permanece imóvel.
Era célebre pelos seus cozinhados. Nunca cozinhara para si. Cozinhara sempre para o seu amor. Cozinhara com tudo o que tinha. Hoje são coisas boas dizia. Hoje são coisas boas dizia no dia seguinte. E no seguinte. E no seguinte. Todos os dias eram coisas boas porque nunca cozinhara para si. Cozinhara sempre para o seu amor. No dia da tragédia. No dia que mesmo não querendo, decorou. No dia da tragédia deixou de cozinhar. De dois em dois dias comia. De dois em dois dias, comia uns pequenos feijões que cresciam inexplicavelmente no seu jardim. Apercebeu-se que cresciam desde que deixou de cozinhar. Nunca os plantara. Nunca os regara. De dois em dois dias comia esses mesmos feijões. Meia dúzia considerava suficiente. Bebia o que a sua torneira espirrava. Líquido castanho esverdeado que a sua torneira espirrava. Era suficiente. De dois em dias era suficiente. Esses eram os únicos movimentos que fazia. Eram os únicos breves movimentos que deixavam por poucos minutos a cadeira construída pelo seu amor despida do seu corpo frágil.
Imóvel. Permanecia imóvel enquanto ouvia o chiar que tímido acompanhava o movimento da cadeira construída pelo seu amor para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente. Subitamente, um estrondo engole esse chiar. O estrondo do partir de umas das pernas da cadeira construída pelo seu amor. O estrondo do seu corpo atirado para o chão. O estrondo que engolira o chiar, é engolido pelo silêncio.  

Fazem-se ouvir três pancadas secas na sua porta.

domingo, 24 de outubro de 2010

Um tudo transformado num nada

Acabo de entrar e deparo-me imediatamente com uma azáfama massiva no apartamento que julgava ser o meu. Chove copiosamente lá fora mas instantaneamente desejo lá estar. Substituir o cheiro a corpos pelo cheiro a chuva. Substituir o som dos gemidos pelo som da chuva a embater no solo e o som do solo a absorver a chuva. Homens por cima de mulheres e homens por cima de homens e mulheres por cima de mulheres e homens por cima de homens interpretam a dança do acasalamento da forma mais imperfeita. Lábios a tocarem-se molhados. Beijos de garrafas em copos e de copos em bocas e bocas em sexos e de sexos em sexos. Uma orgia alcoolizada como sempre o é, ditará os pensamentos suicidas do amanhã. Dos que sobreviverem até ao amanhã. Mantenho-me na mesma posição durante dias horas ou minutos. Não o sei, porque tudo o que se passa à minha volta nada mais é, que algo que não existe. Manchas de sangue e suor no chão que de repente são manchas de sangue e suor em mim que de repente são manchas de sangue e suor minhas, ditam os níveis de violência que se fazem ouvir e que se fazem sentir. Inconsciente, vejo-me arrastado para aquela pirâmide de corpos que há pouco abominara e agora sou eu a azáfama massiva no apartamento que julgava ser o meu e sou eu os homens por cima de homens e os homens por cima de mulheres e sou eu os homens por cima de homens. São os meus lábios secos mas molhados que tocam noutros lábios secos e molhados e noutros copos usados e noutros sexos gretados que beijam outros sexos esquecidos. O demónio olha-me sorridente enquanto me observa no local onde há pouco eu observava os outros demónios. Sou eu agora que aguardo os pensamentos suicidas. Sou eu que aguardo a escapatória que me faça esquecer o que fiz. O que hoje fiz. O que fiz agora. Tento gritar mas nenhum som sai senão o som do silêncio. Senão o som das cordas vocais que me foram arrancadas como garantia de que daqui, nada sairá. Nada sairá senão os sentimentos violentos descarregados em corpos indefesos por corpos que anteriormente descarregaram sentimentos violentos noutros corpos indefesos tornando-se eles mesmos, corpos indefesos. A mesma imagem que há pouco vira repetida e a mim me parecera não mais que uma necessidade fisiológica completamente alheia e desnecessária à minha pessoa, é agora protagonizada também por mim. Sou penetrado enquanto penetro e tocado enquanto toco e beijado enquanto beijo. Sinto o clímax a aproximar-se. Sinto os clímaxes aproximarem-se. Corpos contorcem-se, uns a seguir aos outros e descontraem-se uns a seguir aos outros. Os olhos encerrados pela força do prazer abrem-se custosamente.
Lá fora continua a chover copiosamente e eu não sinto nada.