Passageiras da tristeza deambulam pela superfície áspera e acidentada que é hoje a sua pele. Já lhes conheceria os nomes se os tivessem. A cor avermelhada que após a morte do seu amor os seus olhos adquiriram, não mais desapareceu. Ostentava no seu corpo, velhas roupas que tal como a sua pele, cediam à batalha contra o tempo. Cada centímetro de tecido precedia outro centímetro de tecido esburacado e desfiado. A cor, negro negro como os olhos da morte que há muito ansiava ver, deixara de ser negro negro. Tornara-se um negro avermelhado esbranquiçado. Um negro diferente. Um negro de luto. Há muito aguardava a visita da morte. Aguardava-a com um sorriso se soubesse o que um sorriso significa. Há muito que não sabe. Nunca o soube. Já muitas vezes trincara o cano da herança do seu amor ameaçando premir o gatilho. Nunca o fez e pensa que nunca o fará. Enquanto espera as três pancadas secas na sua porta, pancadas secas provenientes da mão esquelética da visita que tanto aguarda, permanece imóvel. Permanece imóvel, sentada na cadeira construída pelo seu amor, baloiçando. O chiar que acompanha tímido o movimento da cadeira para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente é o único som que hoje conhece. É o único som de que se lembra. Desconhece há muito o som da sua voz. Não tem ninguém com quem falar. Não quer ninguém com quem falar. No dia da morte do seu amor, recebeu visitas. Visitas de pêsames e condolências. No dia da morte do seu amor, recebeu visitas. Visitas que foram as ultimas. Visitas que no preciso momento em que pisaram o que hoje é um vazio, uma marca no chão desgastado, um tapete que o fora mas que já não o é. Visitas que no preciso momento em que o pisaram, foram recebidas com disparos cuspidos pelo cano da herança do seu amor. Foram esses disparos. Foi o som desses disparos o ultimo que conhecera para alem do chiar que tímido acompanhava o movimento da cadeira construída pelo seu amor para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente.
Permanece imóvel.
Era célebre pelos seus cozinhados. Nunca cozinhara para si. Cozinhara sempre para o seu amor. Cozinhara com tudo o que tinha. Hoje são coisas boas dizia. Hoje são coisas boas dizia no dia seguinte. E no seguinte. E no seguinte. Todos os dias eram coisas boas porque nunca cozinhara para si. Cozinhara sempre para o seu amor. No dia da tragédia. No dia que mesmo não querendo, decorou. No dia da tragédia deixou de cozinhar. De dois em dois dias comia. De dois em dois dias, comia uns pequenos feijões que cresciam inexplicavelmente no seu jardim. Apercebeu-se que cresciam desde que deixou de cozinhar. Nunca os plantara. Nunca os regara. De dois em dois dias comia esses mesmos feijões. Meia dúzia considerava suficiente. Bebia o que a sua torneira espirrava. Líquido castanho esverdeado que a sua torneira espirrava. Era suficiente. De dois em dias era suficiente. Esses eram os únicos movimentos que fazia. Eram os únicos breves movimentos que deixavam por poucos minutos a cadeira construída pelo seu amor despida do seu corpo frágil.
Imóvel. Permanecia imóvel enquanto ouvia o chiar que tímido acompanhava o movimento da cadeira construída pelo seu amor para trás e para a frente para trás e para a frente para trás e para a frente. Subitamente, um estrondo engole esse chiar. O estrondo do partir de umas das pernas da cadeira construída pelo seu amor. O estrondo do seu corpo atirado para o chão. O estrondo que engolira o chiar, é engolido pelo silêncio.
Fazem-se ouvir três pancadas secas na sua porta.
O texto continua?
ResponderEliminarParece que sim.
Espero que sim, porque está muito bom. E eu não costumo gostar de réplicas como o chiar e a cadeira, repetições (como as da perua da sara), mas fizeste-o muito bem.
E consegues ter a coisa muito fluida, que para mim é um problema conseguir.
Charros e cumprimentos
B.V.
já este, sei bem que não é autobiográfico... "Era célebre pelos seus cozinhados." =P
ResponderEliminarestá perfeito*