sábado, 19 de fevereiro de 2011

Algumas Barras Pintadas no Solo

         Algumas barras pintadas no solo. O contraste do branco no cinzento negro da estrada. A insignificância que adquire para muitos. Quase todos. A inconsciência que resulta em tragédia. Insignificância. Os passos que poderiam ter sido os últimos dada a violência do embate. O susto dos que assistiam e a perplexidade resultante. O pé esquerdo toca o alcatrão. Depois disso, a colisão faz voar um corpo que durante segundos demorados, é projectado. O raspar do corpo no solo. A pele a rasgar. O sangue que fica para trás. A pele a queimar. O ar que pesado, mostra a gravidade do acidente. Os objectos deslizam para a esquerda direita. Nos pneus fica a marca da travagem. Na dianteira fica a ausência do pára-choques. As mossas. Dentro do carro, o desespero do condutor. No chão, permanece a vítima. Imóvel. À volta, estamos nós. Chocados. Imóveis. Ninguém mexe um músculo. É demasiado. Alguém telefona para o 112. O telefone toca. Atropelamento na Cidade Universitária. “Qual é a rua?”. Cidade Universitária. Despachem-se. “É homem ou mulher? Mexe-se? Tem que idade? Está sozinha? Mas e…”. Os serviços que demoram sempre demais para aqueles que não assistem a uma situação comum. No chão. Com o corpo deformado. Assiste-se a alguns movimentos. A multidão rodeia a vítima. Opiniões. Gritos. Lágrimas. É difícil esconder as emoções. A rapariga tenta levantar-se. Uma vez Duas vezes. Os braços perderam a força. Pedem-lhe que se acalme. “Não te mexas querida”. Após uns instantes, a dor chega. Da voz da rapariga ouvem-se agora gritos. Desespero. Dela. Meu. Nosso. Ninguém sabe o que fazer. A rapariga grita. A ambulância tarda. A rapariga grita. A ambulância tarda. Difícil de lidar. Ao longe ouvem-se sirenes. O coração enche-se de esperança e alívio. Depois tudo esmorece. As ambulâncias não são para nós. Irritação. Na altura, nada é mais importante do que o que estamos a presenciar. Pela primeira vez, a rapariga mostra a face. E o choque aumenta. De pele vê-se pouco. O nariz. A boca. Tudo está vermelho. O sangue é demasiado. O sangue é demasiado. Ninguém quer ver. Mas poucos desviam o olhar. Os gritos não cessam. Idosas correm agora, para trás e para a frente. Gritam. Choram. Lágrimas. Lágrimas. Os gritos não cessam. A rapariga não sabe o que se passa e perde a consciência. Mas quando acorda, os gritos recomeçam. Os gritos não cessam. A ambulância chega. Rezas. Palavras de esperança. Optimismos. Pessimismos. Incerteza. Dor.

Hoje quero fechar os olhos. Hoje tento fechar os olhos. Hoje não quero fechar os olhos. A imagem é difícil de apagar. O som é difícil de apagar. O corpo. O plástico. A máquina. A ironia de um dos intervenientes conduzir uma carrinha funerária. É de facto demais. O inevitável pensamento, “E se fosse eu ali?”. Ou no chão. Ou no carro. Decerto são ambos traumáticos. Assustadores. Não foi comigo e tenho medo. Não quero cerrar os olhos. A imagem é demasiado dolorosa. Não quero cerrar os olhos. Mas os olhos abertos também vêem.

Hoje não durmo.

Amanhã veremos.

2 comentários:

  1. Ainda bem que nunca te atrasas e que pisaste as mesmas barras minutos antes com o andar calmo e atento que te caracteriza. Desta vez foi suficiente...e nunca é demais

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  2. O meu dia de anos marcado por instantes menos felizes. A prova da simultaneidade dos acontecimentos nas vidas que contrastam sem piedade. Olharemo-nos sempre como ondas...

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